Safras dos vinhos: um manual de como usar
A tabela de safras é uma ferramenta útil para o enófilo, mas sozinha não basta: é preciso saber interpretar corretamente as características de cada ano para não errar na pedida
Ricardo Cesar
Desconfiar de verdades absolutas é uma recomendação válida para muitas coisas - e isso certamente inclui vinhos. Quase todas as generalizações que são enunciadas cheias de convicção - "quanto mais velho, melhor", "vinho brasileiro não presta", "vinho francês é bom" - são corretas em alguns casos, porém equivocadas em tantos outros.
A questão das safras é provavelmente o principal exemplo disso. Sempre escutamos a recomendação de procurar os melhores anos e somos bombardeados por materiais de marketing de produtores e importadoras enaltecendo a última safra “histórica”, “melhor da década”, “melhor em uma geração” etc. Claro que a primeira regra é descontar as hipérboles. Mas, além disso, é preciso saber interpretar corretamente as características de cada ano para não errar na pedida. Sim, o uso adequado das informações de uma safra é um pouco mais complicado do que procurar as boas e evitar as ruins.
Um exemplo ajuda a entender a questão. Imagine que você está no “date” da sua vida com aquela pessoa incrível. E que ela adora vinhos! Um restaurante especial, numa noite especialíssima… Você conclui que se alguma vez na vida vale a pena beber meia conta bancária num par de horas, eis que é chegada a ocasião. Com os conhecimentos recentemente adquiridos num curso-relâmpago de vinhos, você escolhe uma super garrafa de Bordeaux da festejada safra de 2020.
Seu raciocínio foi impecável: havia degustado aquele mesmo vinho durante o curso, porém um exemplar da safra de 2012, considerada inferior. Se aquela garrafa anterior já era boa, esta seria de arrebentar, certo? Você mal consegue disfarçar a cara de decepção ao dar o primeiro gole. O vinho até era gostoso, porém muito mais discreto, fechado, sem aqueles aromas intoxicantes dos quais você se lembrava. Pior: sua adstringência estava acentuada, dando uma sensação de "boca amarrada". O conjunto era um pouco pesado, deselegante. Nem sombra do imenso prazer sensorial que tinha sido imaginado. Apenas um amargo retrogosto de cartão de crédito estourado.
Alguma coisa devia estar errada. Seria uma garrafa defeituosa?
A resposta é não. O vinho de 2012 talvez não seja melhor, mas certamente estava melhor para ser consumido naquele momento do que o 2020. As boas safras geram vinhos concentrados e densos, com mais fruta e muitas vezes mais taninos também - em suma, caldos de maior "estrutura", como se diz. Isso vale sobretudo para os rótulos de topo de linha. Podem ser os melhores, mas demandam tempo na adega para amaciar e mostrar toda sua qualidade. Em contrapartida, os produtos de safras fracas são menos concentrados, mais leves e logo ficam prontos para o consumo. Só que não evoluem muito e não duram tanto tempo na adega.
Um grande Bordeaux de uma safra fraca pode estar ótimo em poucos anos. O mesmo rótulo de uma boa safra requer dez anos de guarda para mostrar suas qualidades e talvez esteja ainda melhor com 15 ou 20 anos (embora os enólogos estejam fazendo vinhos que ficam prontos cada vez mais rápido para atender aos padrões de consumo atual). Como num restaurante pede-se o vinho para beber imediatamente, a equação a ser feita é diferente de quem compra uma garrafa para guardar na adega e abrir numa ocasião especial daqui a mais de uma década.
Há um outro ponto importante a ser considerado. Entre os produtores mais sérios, é praxe que nos anos fracos os rótulos de elite tenham produção menor, já que é feita uma seleção super estrita das melhores uvas. Em alguns casos os vinhos de topo de gama simplesmente não são produzidos nas safras muito ruins. Com isso, as melhores uvas, que normalmente iriam para esses produtos premium, são empregadas nas linhas intermediárias, que dessa forma não perdem tanta qualidade e podem até ganhar.
Mais algumas informações para considerar nesse quebra-cabeças: o estilo do produtor e o seu gosto pessoal. Por vezes prefiro as garrafas de safras mais fracas de alguns produtores de "mão pesada" que costumam fazer vinhos superconcentrados. Assim a natureza ameniza um pouco alguns exageros.
Na verdade, o próprio conceito do que é uma safra boa ou ruim é, até certo ponto, variável, acompanhando também as preferências estilísticas de críticos e produtores. Houve uma época em que, muito por influência de Robert Parker, os anos bem quentes eram considerados bons e os anos mais frios e úmidos, ruins. Essa é uma interpretação até certo ponto clássica de como ler o potencial de uma safra. Mas veio o aquecimento global, vieram as tecnologias de manejo de vinhedos e de vinificação, sobreveio o cansaço dos vinhos muito pesados, alcoólicos e extraídos, instalou-se a busca por frescor e elegância e de repente… um ano de temperatura amena e com um pouco mais de umidade passa a ser exatamente o conceito de uma safra excelente. As coisas mudam.
É por essas e outras que qualquer bebedor com certa experiência já se deparou com uma garrafa maravilhosa pela frente e quando foi conferir o rótulo, bem, era justamente daquela safra que devia ser evitada a todo custo.
Moral da história: a tabela de safras é, sim, uma ferramenta útil para o enófilo, mas sozinha não basta. O mundo dos vinhos é bem mais complexo do que um "ano bom" ou "ano ruim". Ainda bem.
Vinhos do Guia da semana:
Três vinhos de guarda
Um exemplar mais ambicioso e sofisticado da região portuguesa da Bairrada. Os aromas sugerem fruta negra madura e fresca, leve iodado e erva seca. Na boca, é intenso e limpo, com acidez perfeita e todos os elementos em harmonia, terminando com um toque salino. Os taninos são firmes e presentes, pedindo uma boa comida para acompanhar.
Mouton Cadet Cuvée Héritage Rouge 2019
A merlot predomina neste tinto bordalês concentrado, com notas de fruta negra madura, levemente compotadas, e um toque de grafite. No paladar, é concentrado, com acidez no ponto, tanino em grande quantidade, mas finos, e com longa persistência final.
Fattoria Montecchio Chianti Classico Riserva 2019
O Riserva é a máxima expressão do Chianti. No geral, é um vinho de guarda. Esta safra de 2019 é prova disso. Ainda vai longe. O vinho e o tempo revelam cereja fresca, defumado, castanha assada, mix de ervas e flores sutis. boa acidez com fruta vermelha (cereja e morango) bem integrada com a boa acidez e taninos firmes. No final, canela e capuccino.
Três vinhos para beber agora
Este é um malbec com foco nas notas frutadas, aqui lembrando frutas negras maduras (ameixas) mescladas com especiarias (pimenta preta). Traz nuances de madeira tostada, taninos firmes e boa acidez no paladar.
Domaine du Bouscat La Gargone 2013
Um prazer provar um Bordeaux com expressão tão clássica e entrando em sua maturidade. Frutas vermelhas e negras em licor, almíscar, couro e incenso dominam o nariz. Na boca, os taninos ainda têm força e estrutura exemplares. Frescor suficiente.
Quinta dos Murças Assobio Tinto 2021
Um tinto que revela as sutilezas de um Douro moderno. Nariz com notas de violeta, ervas frescas mentoladas, esteva, fruta negra madura no ponto, e chá preto. No paladar, corpo médio, com textura polida, taninos e acidez bem equilibrados e frescor no final.
* Preços indicados pelos produtores e importadoras em julho de 2024 (Guia 2024)
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