Chianti é sinônimo de vinho italiano
Recente prova dos rótulos da tradicional vinícola Mazzei é uma oportunidade para celebrar os estilos, a história e o potencial dos vinhos da região, e buscar minha relação familiar com a Itália
Beto Gerosa
O Chianti é aquele tipo de produto que dispensa identificação. Há muito tempo, mesmo no Brasil, é sinônimo de vinho, como registra o romance Dom Casmurro, que se passa entre 1857 e 1875.
“Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição de costume, e como eu lhe disse que a vida tanto podia ser ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou; ‘A vida é uma ópera e uma grande ópera (...)’”
Capítulo IX, A ópera, de Dom Casmurro, Machado de Assis
O Brasil era uma monarquia, sob a tutela de Dom Pedro II, e Machado de Assis descreve a cena sem ter de explicar ao leitor que Chianti é um vinho. Chianti é, na prática, uma elipse de vinho italiano.
Além de reconhecimento desde o tempo das polainas por aqui, o Chianti carrega uma fama irrefutável: é campeão na hora de combinar com uma refeição, em especial acompanhado de molho vermelho. Não por acaso o Chianti de Machado está presente em um jantar. Sua estrutura, os aromas de cereja, a facilidade de beber e alta voltagem de acidez conferem um aposto sempre associado ao estilo: “um vinho de comida”. Nossas reverências, pois, à uva sangiovese, a alma do Chianti.
A tradição da Mazzei
A família Mazzei é uma legítima representante desta vertente do vinho italiano. Tradição não falta. Fundada em 1435, quando o Brasil ainda não fazia parte do mapa mundi, a Mazzei é comandada atualmente pela 25ª geração. Além da propriedade de Castello di Fonterutoli, em Castellina in Chianti, em Siena, fazem parte do portfólio da família as vinícolas Belosguardo, em Maremma, Toscana e Zizola, em Notto, na Sicília. No total são produzidas aproximadamente 1 milhão de garrafas por ano nas três vinícolas.
Em recente visita ao Brasil o diretor de exportação Giovanni Mazzei, apresentou parte de seu portfólio, que migrou para a importadora Interfood. Entre as garrafas abertas o Chianti Classico Fonterutoli 2021 (90% sangiovese, 5% malvasia nera, 5% colorino), de sabor intenso e suave – best-seller da empresa - e o Chianti Riserva Ser Lapo (90% sangiovese, 10% merlot), também 2021, de maior estrutura e nervo, harmonizam perfeitamente com este texto.

Giovanni aponta a “bebilidade” como a maior tendência para o futuro do vinho. “É importante preservar as uvas: vinificar menos e com mais delicadeza”, defende. “O vinho precisa ser suave e gentil”. Castello di Fonterutoli, onde são gestados estes dois rótulos, conta com 7 microclimas com diversidade de solos e altitudes distribuídos em 110 hectares, separados em 114 parcelas. Os 36 clones de sangiovese usados na Mazzei para a construção do Chianti são armazenados em grandes barricas para preservar a fruta. “Vendemos garrafas e não barricas”, resume Giovanni. Bebilidade talvez seja, de fato, o grande diferencial do Chianti diante de caldos pesados e exagerados que encobrem a comida e só harmonizam com eles próprios. Bebilidade (drinkability, o termo mais usado) é a senha.
Senta que lá vem história
Como todo vinho com muita história, o Chianti carrega várias consigo. A primeira referência ao Chianti como região produtora encontra-se documentada na correspondência de 16 de dezembro de 1398 entre o notário Ser Lapo Mazzei e o comerciante Francesco Datini. Diz a carta: "A pagar, em 16 de dezembro (1398), 3 florins, 26 pence e 8 dinares a Piero di Tino Riccio, por 6 barris de vinho do Chianti... dito produto pago por carta de crédito de Ser Lapo Mazzei". Não por acaso, um dos rótulos produzidos pela Mazzei é uma homenagem ao notário, o Ser Lapo Chianti Classico Riserva.
Apesar da documentação do Ser Lapo muita mais antiga, a história também registra que o padrão do Chianti é uma criação do Barão de Ricasoli no ano 1872. Ele definiu a proporção das uvas sangiovese, canaiolo e malvasia que deveriam ser usadas na composição do vinho. Desde então o Chianti já teve altos e baixos. Teve um tempo de vinhos muito diluídos, de produção massiva e uma posterior recuperação de imagem. Nos últimos 35 anos o padrão de qualidade do Chianti mudou. E muito. Na verdade, o vinho italiano como um todo melhorou. “A renovação do vinho italiano de qualidade começou, na década de 90, na Toscana, mais especificamente na região do Chianti”, ensina o crítico e consultor Jorge Lucki. A fórmula original de Ricasoli, no entanto, permanece a espinha dorsal do vinho. Predominância da uva nativa sangiovese (70 a 80%, dependendo do estilo) e parcelas de outras uvas tintas e brancas. A criação de consórcios que regulamentam e controlam as regras da região teve um papel importante nesta qualificação.
Outra versão que se non è vero, è ben trovato narra a criação do Gallo Nero que aparecem em algumas garrafas do Chianti Classico, (se você já conhece a história pode pular este parágrafo, afinal o tempo do leitor vale ouro). Diz a lenda que para resolver um impasse territorial entre Florença e Siena decidiu-se substituir uma guerra sangrenta entre as duas cidades por uma disputa entre dois cavaleiros. Assim que o galo cantasse pela manhã os dois cavaleiros sairiam de sua localidade e o ponto de encontro determinaria a extensão do território da região de Chianti pertencente a cada cidade. Os moradores de Siena escolheram um galo branco e alimentaram a ave para o canto matutino ser alto e forte. Os florentinos, experts na arte da manipulação (se fosse hoje estariam espalhando fake news pelo WhatsApp), selecionaram um galo preto e não deram qualquer migalha para ele comer. No dia do desafio, o galo preto, magro e esfomeado, começou a cantar antes mesmo de o sol nascer, em busca de alimento. Seu colega branco, satisfeito e gordo, só despertou mais tarde. Resultado: o cavaleiro florentino saiu a galope com algumas horas de vantagem sobre seu desafiante e os dois se encontram a apenas alguns metros de distância dos muros de Siena, proporcionando à Florença o domínio da região do Chianti. Daí o uso do selo do Gallo Nero nos vinhos certificados da região desde 1716.
Chianti, Chianti Classico e Riserva
Existem duas áreas de Chianti. Uma ocupa o miolo da Toscana, fica entre Siena e Florença, e é denominada de Chianti Classico. A outra, chamada apenas de Chianti, está distribuída em 7 subregiões em torno do Chianti Classico. São elas as subáreas geográficas de Colli Aretini, Colli Fiorentini, Colli Senesi, Colline Pisane, Montalbano, Rufina e Montespertoli: elas estão identificadas com as cores e legendas no mapa abaixo; já o Chianti Classico compreende o espaço sem cor no centro.
Estas duas vertentes do Chianti têm mais semelhanças que diferenças.
Chianti Classico segue as regulamentações do Consorzio Vino Chianti Classico, que exige um mínimo de 80% de uva sangiovese na garrafa e permite 20% de outras uvas tintas, como canaiolo, colorino, e as internacionais cabernet sauvignon, cabernet franc, syrah e merlot (não permite mais uso de uvas brancas desde 2006) e muitas vezes é identificado pelo selo do Galo Nero (a historinha, meio manjada, contada acima).
As outras regiões delimitadas do Chianti são regidas pelas normas do Consorzio del Vino Chianti. Exibem o nome das subáreas no rótulo, diferem de estilo entre elas em função do clima, do solo e da proximidade ou não do mar e determinam o uso de no mínimo 70% de sangiovese no vinho e autorizam a mescla de até 30% de outras uvas, sendo 10% no máximo de uvas brancas (cada vez menos usadas, diga-se de passagem) e tintas nativas, canaiolo, colorino, e internacionais, cabernet sauvignon, cabernet franc e merlot (estas duas últimas no máximo 15%).
A região sob a regulamentação do Consorzio del Vino Chianti abrange as províncias de Florença, Siena, Pisa, Pistoia, Prato e Arezzo. São masis de 3.000 produtores que cultivam mais de 15.500 hectares espremendo uvas e engarrafando mais de 800.000 hectolitros de vinho, ou seja quase 100 milhões de garrafas por ano.
O Riserva é a máxima expressão da variedade nativa sangiovese, uma uva de colheita tardia. É um vinho de alta qualidade, complexo e de boa estrutura. No geral, um vinho de guarda, em oposição aos Chianti mais simples. Aqui a sangiovese é mais séria. Seu caldo ganha complexidade e diferenciação pela intensidade no sabor e graças ao processo de microoxigenação e envelhecimento em barricas e na garrafa. Como regra um Riserva passa no mínimo de 2 anos entre barrica e garrafa apurando seus sabores e aromas. No nariz apresenta notas de frutas vermelhas ou escuras, aromas de violetas e exibe um final longo. Sua acidez presente lhe confere um caráter único para um vinho de guarda: aquele frescor que é marca registrada do Chianti. É um vinho que cresce com a comida, e a comida se beneficia com o vinho.
Viajando pelos vinhedos do Chianti Classico
A propósito, se você planeja viajar à Itália e o vinho faz parte do seu roteiro, a Toscana é o seu GPS e a região do Chianti Classico seu destino para o enoturismo. A opção mais prazerosa e esperta para quem viaja de Roma de carro e pretende alcançar Florença é enfrentar a sinuosa estrada vicinal S222, também conhecida como Via Chiantigiana. Você percorrerá lentamente caminhos cercados de vinhedos, oliveiras, vinícolas, plantações de girassol, pequenos recantos, e vai ganhar uma experiência única: uma imersão nos vinhos e na gastronomia italiana. Afinal, quem tem pressa quando a paisagem ao redor é um cenário de filme e o tempo é medido em taças de vinho e em lentas garfadas em pratos da culinária local? Dica: hospede-se em Castellina in Chianti e aproveite para jantar, com vinho, claro, no Ristorante Sotto Le Volte, instalado em um antigo depósito de gelo e posteriormente abrigo antiaéreo durante a Primeira Guerra Mundial.
Minha história com o Chianti
Aqui peço licença do leitor para abrir um longo parêntese para finalizar este texto com uma narrativa em que o Chianti está relacionado à minha memória afetiva e familiar. Meu avô, o nonno, Edílio Gerosa, nasceu no norte da Itália. Eu pouco convivi com ele. A nonna - o nome real era Luiza, mas ela gostava que chamassem de Dona Linda, modesta a nonna - era brasileira, mas passou parte da infância e adolescência com os pais na Itália e era mais italiana e orgulhosa de sua descendência e cultura do que o nono. Ela viveu parte de seus últimos anos em nossa casa e falava aquele dialeto mezzo portoghese, mezzo italiano mas de fácil compreensão. De vez em quando cantarolava cancionetas napolitanas como “Santa Lacia” e tinha um mantra que entoava diante de situações ruins ou impasses do dia a dia, em um fraseado cantado em estilo staccato, acentuando e prolongando as vogais finais: “Ecco, Ecco la questiooooneeee!”.
À mesa, claro, os pratos de resistência eram a macarronada, a lasanha, o cappelleti in brodo que minha mãe, mesmo não sendo uma oriundi – para decepção da nonna -, sabia manejar tão bem que lembravam a infância de meu pai. Aqui era o encaixe perfeito para associar minha família e minha descendência italiana ao vinho. Relembraria as garrafas de Chianti de embalagem de palha que eram abertas para acompanhar os molhos de tomate substanciosos, os almoços barulhentos, regados a uma algaravia de pane e vino! Cairia muito bem para um sujeito que ajuda a editar um guia de vinhos e escreve sobre o tema lembranças assim. Mas a realidade é que uma parte importante desta cultura gastronômica não foi herdada: o vinho. Não existe na minha memória qualquer imagem de garrafas de vinhos sobre a mesa nas refeições e nas festas em casa ou mesmo do nono e da nona com um calice da bebida. Nem éramos muito barulhentos para completar. Era cerveja a bebida alcóolica que acompanhava as massas.
Minha mulher costuma ironizar afirmando que sou um “italiano falso”, pois, com exceção talvez do nariz exibido e do sobrenome Gerosa, outras características que denunciariam a origem de meus nonos não se materializaram: não falo alto, aliás pouco falo, não gesticulo, não sou palmeirense (nem meu pai era), sou mais introvertido que expansivo e nem sou muito fã de pizza, apesar de apreciar a gastronomia italiana. “Sou um italiano do Norte”, costumo retrucar com alguma ironia. Mas talvez o código genético dos antepassados tenha enfim se revelado quando deparei, um tanto tardiamente, com o vinho nas degustações e nos encontros com produtores e especialistas. O sangue italiano emergiu. O DNA da “Enotria primordial” enfim se revelou. O vinho me reaproximou da Itália, das origens, do Chianti. “Ecco, Ecco la questiooooneeee!”.
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A elegância dá as cartas aqui, Com um visual rubi claro, os aramos desse vinho lembram erva-doce, alcaçuz e charuto, tudo embalado por um folral delicado. No paladar sobressaem as frutas vermelhas frescas e um toque de couro, Taninos macios e sem arestas
Mazzei é um produtor de referência na Toscana – e esse rótulo mostra que isso não é por acaso. O primeiro ataque no nariz é de mentol, erva-doce, cravo, canela e frutas vermelhas maduras. Macio na boca, tem acidez justa e um toque de tabaco final.
Poderi del Paradiso Chianti Colli Senesi Riserva 2022
Uma das sete sub-regiões do Chianti Classico, este Colli Senesi Riserva se destaca pela intensidade e complexidade. Na palheta de aromas, frutas vermelhas (cereja fresca e morango), um sutil terroso, toffe e baunilha. Acidez intensa e viva, paladar mais terroso ainda com especiarias (canela, noz-moscada), embalados por taninos com boa firneza, que pedem comida.
Fattoria Montecchio Chianti Classico Riserva 2019
O Riserva é a máxima expressão do Chianti. No geral, é um vinho de guarda. Esta safra de 2019 é prova disso. Ainda vai longe. O vinho e o tempo revelam cereja fresca, defumado, castanha assada, mix de ervas e flores sutis. boa acidez com fruta vermelha (cereja e morango) bem integrada com a boa acidez e taninos firmes. No final, canela e capuccino.* Preços indicados pelos produtores e importadoras em julho de 2024 (Guia 2024) e julho de 2023 (Guia 2023)
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